Hoje acordei pensando num poema de Manoel Bandeira: O Bicho. Ei-lo:
“Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.”
Talvez a razão de vir à minha memória tão antigo poema seja o fato de eu me ter deparado com algo semelhante na noite passada: um ser estranho, olhos vermelhos e arregalados, pele escura, queimada do sol; a magreza lhe dava um aspecto cadavérico. Os dentes eram brancos e muitos. Parado a certa distância, apenas olhava-nos, contentes, brincando, sorrindo, como fazem os que não existem, mas apenas vivem. Pensei: ele tem fome. Fiz-lhe sinal com a mão, pedi que se aproximasse. Receoso como um cão, desejava se aproximar, mas, com medo de ser chutado, hesitava. À meia distância, estendeu a mão, pegou a marmita que lhe fora oferecida e desapareceu na escuridão.
Há muitos desses no mundo, não poucos ao nosso redor.
Isso me levou a pensar: eles têm grande vantagem sobre os nós: eles existem. Sim… a dor, a fome, o frio, o medo, os fazem existir. Não apenas eles vivem, como vive qualquer um, qualquer animal, qualquer planta; porém, eles existem, pois conseguiram sair de si mesmos, do fantasioso “mundo de Bob”, e, de olhos bem abertos, enfrentam a vida como ela é. Para eles, cada dia é uma oportunidade; cada oportunidade, uma saída; cada saída, um instante de sobrevivência. Eles de fato experimentam cada momento, sensíveis e atentos a tudo o que se passa ao seu redor.
Nós, diferentemente, anestesiados pelo ópio da profusão, somos verdadeiros pródigos, perdulários, encasulados no mesquinho mundo individual, particular, próprio. Enganados pela abastança, nos tornamos egoístas e avaros, insensíveis e superficiais. Em que se resume nossas vidas senão no abrir e fechar de portas, no carimbar de papel, no ir ao banco, ao cinema, à igreja, ao mercado? Os dias passam e não percebemos; pessoas nos tocam e não sentimos; olhamos sem ver e ouvimos sem escutar.
Nesse caso, tornou-se verdadeiro para nós o texto sacro: “A mesa se nos tornou em laço e armadilha.”
O mundo moderno – mundo das máquinas, da indústria, do capital – nos automatizou, de sorte que já não existimos, antes, nos tornamos meras engrenagens que fazem girar a roda-gigante do grande parque de diversão.
Já não quero esse mundo para mim. Quero o mundo dos bêbados, dos loucos, das crianças, dos hereges, dos marginalizados, dos Carlitos, dos Paulos, dos Cristos.
Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.
Alexandre Rodrigues