MINHA VISÃO E COMPREENSÃO ACERCA DOS RELATOS DO ANTIGO TESTAMENTO

Muito se tem discutido acerca dos textos veterotestamentários que trazem as marcas da violência. Tal discussão não é nova, antes, desde os tempos dos pais da igreja, séc. II, tem-se debatido esse assunto. A grande questão, epicentro de toda controvérsia, consiste nas seguintes perguntas: 1) É Deus o autor do mal? 2) As maldades praticadas em nome de Deus, nas páginas do Antigo Testamento (doravante chamado de AT), são por ele ordenadas e ratificadas? 3) Estaria Deus por detrás de todos os homicídios, fratricídios, genocídios, assim como de todas as formas de penas cruéis, impostas pela lei de Moisés? 4) Como explicar a inspiração das Escrituras do AT, caso a resposta para as três primeiras perguntas seja negativa? Bem, para responder a essas questões, quero primeiramente apresentar minhas bases hermenêuticas, com o fim de justificar as conclusões a que chegarei. Os escritos bíblicos do AT são como cacos de vidros, de toda e variada espécie, que, num primeiro momento são diferentes e antagônicos, gerando incompatibilidade e incongruências entre si. O mesmo Deus que ordena “não matarás” é o mesmo que “manda” matar um homem, porque este catava lenha em dia de sábado. Deus condena o sacrifício humano, praticado pelos pagãos, que ofereciam seus filhos a Moloque, mas “aceita” o sacrifício da filha de Jefté. Deus ordena que se ame ao próximo como a si mesmo, mas “autoriza” a escravidão e o espancamento, com pau, dos escravos, pelos seus senhores. (Só para citar alguns exemplos). Diante disso, é preciso encontrar a unidade do pensamento divino, para não se cair em contradição. É mister, pois, que o leitor das Escrituras reúna os cacos e faça um belíssimo vitral, a fim de obter a visão do todo, e não ser enganado com as partes isoladas, que nada definem. Uma vez reunidos (os cacos), já não se tem partes, mas uma unidade de sentido, significativa, capaz de revelar a Deus, verdadeiramente. A interpretação das Escrituras deve partir do maior para o menor. Ou seja, as partes é que deverão ganhar sentido, a partir do todo, e não o contrário. Senão, o todo ficará comprometido por causa da defesa das partes, que não definem, em si mesmas, o todo. Somente na visão do todo Deus é revelado plenamente. Tentar ver Deus nos “cacos”, ignorando o “vitral”, leva-nos a caricaturar a imagem do Santo, pois reduz o Eterno a uma fração, a qual é incapaz de definir o Infinito. A função primordial das Escrituras é a revelação de Deus (Jo 5:39, 46; At 28:23; Rm 1:19-20). Portanto, o princípio das partes e do todo significa, na prática, a necessidade de se estabelecer, primeiramente, as premissas referentes ao caráter imutável de Deus – o cerne das Escrituras –, a partir do qual, as partes deverão ser interpretadas. Deus é absoluto; os eventos que constituem a história prosaica e temporal dos filhos de Israel e das nações são relativos. Peço que leia, então, cada ponto que a seguir apresentarei, sem saltar nenhum, até o fim, para que nenhuma brecha seja deixada no entendimento. Acompanhe-me.
  1. QUEM É DEUS SEGUNDO AS ESCRITURAS:
  1. Deus é luz, e nele não há treva nenhuma (1Jo 1:5). Ora, vede. Essa declaração traz profundas implicações, que não raras vezes são ignoradas, a saber:
  1. Afirmar que Deus é luz e que nele não há treva nenhuma gera uma dicotomia inconciliável. Em Deus não existe, e NÃO PODE HAVER, traço algum, ou mancha, ou presença, das trevas. De sorte que, tão logo eu assumo essa verdade, não posso conferir a Ele, ENQUANTO FONTE, nada que macule a sua natureza. Tudo que procede das trevas, EM NATUREZA, não pode provir da Luz. Por isso está escrito que “é impossível que Deus minta” (Hb 6:18), pois a mentira é filha das trevas (Jo 8:44). Tampouco pode a Luz usar as trevas a seu favor, como instrumento de sua vontade diretiva, aliando-Se a ela para fins de seu propósito, porque Deus não pode negar a Si mesmo (2Tm 2:13).
  1. O que são as trevas segundo as Escrituras? Ora, é tudo aquilo que não é luz. Isto é, aquilo que não é Deus, e, portanto, diabólico, como o próprio nome sugere pelo prefixo die: separação. Tudo pois que nasce da separação da Luz é trevas. João, em sua primeira epístola, afirma que o ódio e a morte são produtos das trevas, e, por isso, não pode provir de Deus. Eis a razão e o argumento joanino, irrefutável, de que, AQUELE QUE DIZ PERMANECER NELE DEVE ANDAR COMO ELE ANDOU. Afinal, como pode alguém afirmar que está n’Ele – que é luz, amor e verdade –, e ao mesmo tempo odiar a seu irmão, e chegar ao auge da amargura e MATAR o seu irmão? (1Jo 2:6-11). Estar na luz e, ao mesmo tempo odiar e matar, é IMPOSSÍVEL, pois Deus é luz, e nele não há treva nenhuma. Se está em Deus não há ódio; se não há ódio, não há vingança; se não há vingança não há morte, enquanto ato de execução.
Matar, enquanto ato de execução, segundo João, é obra do diabo, o qual é assassino desde o princípio (Jo 8:44). Todo assassino não tem a vida eterna permanente em si (1Jo 3:15). Por isso Deus não pode matar, porque Deus é luz. Mas o que dizer das palavras de Isaías, que disse que Deus criou as trevas (45:7)? Ora, isso é uma questão conceitual e filosófica. As trevas não existem a priori, senão pela ausência da luz. As trevas só podem existir enquanto possibilidade. É no afastamento da luz que aparecem as trevas, as quais, não são, enquanto há a presença da luz. Isso explica por que em DEUS NÃO HÁ TREVA NENHUMA, NEM TAMPOUCO PODE HAVER. Pois, se Deus é a própria luz, como pode haver nele trevas? A não ser que Deus pudesse se afastar dele mesmo. Nesse caso, ele não seria a luz, mas tê-la-ia como mero acessório, do qual poderia se desvencilhar. Se assim fosse, Deus estaria sujeito a cair, afastando-se da Luz, o que Lhe é impossível. O mesmo acontece à morte. Ela não existe como um ente ou coisa semente. Morte é ausência de vida. Quando o homem pecou, ele morreu (Ef 2:1). Mas, como assim ele morreu, se continuou vivo? Desta proto-revelação, temos o conceito de morte, enquanto afastamento de Deus, em sua consciência. O resultado inevitável o levou a um morrer constante, que é a morte progressiva do corpo. Quando esta acontece cabalmente, chegando ao seu clímax, a vida ausenta-se do corpo. Com isso, morre-se somente o corpo, não a alma, que continua a subsistir em Deus, noutro plano. Quando, por fim, todo o Universo tiver sido reconciliado com o Criador (Ef 1:10), isto é, retornado à fonte da Vida, a morte terá sido vencida, cumprindo assim a palavra que foi dita: “tragada foi a morte pela vitória” (1Co 15:54). De sorte que, o afastar-se da vida gera a morte, e o afastar-se da Luz gera as trevas. Nesse sentido, Deus não pode matar, porque em Sua natureza ele é a própria Vida (Jo 1:4; 14:7; 1Jo 1:3; 5:20).
  1. Deus é amor (1Jo 4:8). Esta é outra revelação da natureza santa de Deus que nos leva, inevitavelmente, a rejeitar qualquer barbárie praticada ou ordenada por Ele. Se Deus é o mesmo ontem, hoje e eternamente (Hb 13:8), EM QUEM não pode haver variação ou sombra de mudança (Tg 1:17), devo interpretá-lO, quanto a Ele mesmo, não aos homens, como sendo e agindo em conformidade com o seu caráter de amor. Ora, “o amor é paciente, é benigno; o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente, não procura os seus próprios interesses, não se exaspera, não se ressente do mal, não se alegra com a injustiça… tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1Co 13:4-7). Como, pois, poderia eu entender que este Deus-amor pudesse ordenar tais coisas:
  1. “Se alguém ferir a seu escravo ou a sua escrava com pau, e este morrer debaixo de sua mão, certamente será castigado; mas se sobreviver um ou dois dias, não será castigado; PORQUE É DIREITO SEU” (Ex 21:20-21);
  1. “por isso assim diz o Senhor Deus: Eis que eu, sim, eu estou contra ti; e executarei juízos no meio de ti aos olhos das nações. E por causa de todas as tuas abominações farei sem ti o que nunca fiz, e coisas às quais nunca mais farei semelhantes. Portanto OS PAIS COMERÃO A SEUS FILHOS no meio de ti, e OS FILHOS COMERÃO A SEUS PAIS…” (Ez 5:8-10);
  1. “Disse, pois, o Senhor a Moisés: Toma todos os cabeças do povo, e ENFORCA-OS AO SENHOR diante do sol, para que a GRANDE IRA DO SENHOR se retire de Israel” (Nm 25:4);
  1. “Disse o Senhor a Josué: Não os temas, pois amanhã a esta hora eu os entregarei TODOS MORTOS diante de Israel. Aos seus cavalos CORTAREIS OS TENDÕES DE SUAS PERNAS, e a seus carros queimarás a fogo” (Js 11:6);
  1. “Feliz aquele que pegar teus filhos e ESMAGÁ-LOS CONTRA A PEDRA” (Sl 137:9);
  1. “E dize à terra de Israel: Assim diz o Senhor: Eis que estou contra ti, e tirarei a minha espada da bainha, e exterminarei do meio de ti O JUSTO e O ÍMPIO. E, por isso que hei de exterminar do meio de ti O JUSTO e O ÍMPIO, a minha espada sairá da bainha CONTRA TODA A CARNE, desde o sul até o norte” (Ez 21:3-4).
(Só para citar alguns textos dentre milhares que se encontram no AT). Conferem esses procedimentos com o Deus verdadeiro, o qual é Luz, Verdade e Amor? Onde está o amor que não se ressente do mal, se Deus, ao sofrer o mal, manifesta-se em vingança? Onde está o amor que não se alegra com a injustiça, se Deus ordena que se corte os tendões das pernas dos cavalos, e que mata o JUSTO juntamente com o ÍMPIO, e que chama de bem-aventurado aquele que esmaga a cabeça das crianças contra a pedra? Isso é minimamente estranho.
  1. DEUS NÃO É MAQUIAVÉLICO. Alguns estudiosos das Escrituras procuram harmonizar as violências do AT com o amor do Pai, revelado no Novo Testamento (doravante chamado de NT), na pessoa de Seu Filho. Para tanto, utilizam-se do seguinte argumento: “Embora seja sempre o mesmo, Deus revelou-se, ao longo da história, segundo o grau de consciência dos homens, em cada tempo. Isso significa que, embora sendo amor, Deus utilizou-se da cultura, do modo de organização política, da barbárie comum aos de então, dos conceitos rudimentares acerca do valor da pessoa humana, com o fim de revelar-Se e levar a cabo os Seus propósitos. Assim, quando Deus ordenava que se mutilasse um animal, ou que matassem crianças inocentes, ou que destruíssem nações inteiras, os homens daquele tempo não viam aquilo como sendo mal, ou perverso, como nós do século XXI consideramos; Deus, então, aproveitava-Se da consciência involuída dos homens, usava de seus mecanismos animalescos, com o fim de fazer conhecido o Seu poder, Sua soberania, revelando-Se como o Deus todo-poderoso, o Senhor dos exércitos”.  A ISSO CHAMAM REVELAÇÃO PROGRESSIVA. Mas, vejamos aonde chegaremos se aceitamos tal argumento:
  1. REVELAÇÃO PROGRESSIVA é a revelação paulatina de Deus, de sua natureza e caráter, ao longo dos tempos, mediante as Escrituras. Seria contraditório se Deus, querendo revelar-Se aos homens de determinado tempo, Se igualasse a eles, condescendendo-Se à ética e moral caídas. Tal revelação, ao invés de elevar os homens a Deus, rebaixa Deus à condição de homem caído, pois, não somente estaria Deus a ratificar a tirania, como também estaria a ordenar a continuidade do mal, NEGANDO-SE A SI MESMO.
  1. Se assim fosse, Deus cairia naquela velha máxima de Maquiavel (se bem que a máxima não foi cunhada por ele, mas traduz o seu pensamento): “Os fins justificam os meios”. Ou seja, Deus teria agido por meio de um povo bárbaro, cometendo toda sorte de atrocidades; e, embora esses atos fossem contra a Sua natureza e caráter, o importante era a revelação final de Sua força sobre todos os que não cumprem a Sua vontade. Para Maquiavel, o essencial é que os príncipes mantivessem a plena soberania do Estado, não importando se, para isso, tivessem que matar, exterminar, exilar, torturar.
  1. COMO ENTENDER OS TEXTOS VETEROTESTAMENTÁRIOS:
  1. A Bíblia, embora composta de sessenta e seis livros, constitui-se num único livro, cuja unidade de sentido deve ser buscada dentro dela mesma. Os estudiosos das Escrituras precisam, pois, identificar sua hermenêutica, a fim de obter conclusões compatíveis com o que ela própria quer ensinar. Tomar o caráter de Deus, revelado na pessoa de Seu Filho, como premissa de interpretação, é o primeiro e grande princípio, conforme fizemos no tópico primeiro deste artigo. O segundo grande princípio é identificar a natureza dos escritos do AT, e o modo como foram interpretados pelos profetas.
“O único que possui imortalidade, QUE HABITA EM LUZ INASCESSÍVEL, a quem homem algum JAMAIS VIU, NEM É CAPAZ DE VER” (1Tm 6:16). Associado a este texto de Paulo, João demonstrou, pelas palavras de Jesus, que os judeus não podiam compreender nem mesmo as coisas da terra, que dirá se Jesus lhes falasse das coisas do céu; e arrematou, dizendo: “Nós dizemos O QUE SABEMOS e testificamos O QUE TEMOS VISTO… Ora, ninguém subiu aos céus, senão aquele que de lá desceu, a saber, o Filho do Homem que está no céu” (Jo 3:10-13). Com isso, quis João esclarecer que os que vieram antes de Cristo, não compreendiam, com exatidão, as coisas referentes a Deus, que está no céu. Nenhum dos profetas subiu aos céus, por isso não compreendiam as coisas celestiais; como, pois, podiam falar com precisão acerca do Pai, que está no céu? Diante desta fatalidade, afirmou João: “Porque a lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo. Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, QUE ESTÁ NO SEIO DO PAI, é quem O REVELOU” (Jo 1:17-18). Ou seja, a revelação de Deus, quanto à sua verdadeira natureza e propósito, jamais poderia ser trazida por aqueles que nunca o viram. Por esse motivo, Deus enviou o Seu Filho ao mundo, a EXPRESSÃO EXATA DO PAI (Hb 1:3), a fim de tornar conhecido o verdadeiro Deus (1Jo 5:20). Quando diz tornar conhecido o verdadeiro Deus, não significa que o Deus do AT era falso; mas, que, o conhecimento recebido era indireto, passando pelas imagens terrenas (pois o que viam não passavam de teofanias), com linguagem humana (limitada aos conceitos e interpretações possíveis ao tempo), além de passar pelo olhar humano, que, mediante o seu grau de conhecimento e nível de consciência, INTERPRETAVA o que via, segundo os estereótipos próprios de seu tempo. Por isso diz que a lei era SOMBRA DAS COISAS QUE HAVIAM DE VIR (Cl 2:16-17; Hb 10:1). Ora, a sombra – sempre de cor preta – denuncia a ausência de luz. Ao se ver uma sombra, o que se pode saber é da existência de um suposto objeto (corpo), não, porém, a sua substância, com tudo que lhe é próprio. A luz, portanto, que os antigos tinham de Deus permitiam apenas que eles vissem Deus e seu propósito como sombras, deformados, alongados, diminuídos, imprecisos; de sorte que, DO JEITO QUE ELES VIAM, FALAVAM, sempre transmitindo uma imagem distorcida do Deus verdadeiro. Quando Moisés fala sobre Deus, mesmo que em Seu nome, não se pode admitir que, o que ele diz, seja exatamente o que Deus é, pois Moisés não O via como de fato ele é. Quando a luz se intensificou um pouco mais, os profetas já o podiam ver com maior nitidez. Eis a razão de haver tantas profecias messiânicas em seus escritos (agora de maneira mais explícita), e de haver tanta repreensão aos judeus com respeito ao seu relacionamento com a lei: a lei, não raras vezes, fora relativizada, com vistas a tocar a sua substância (Is 66:1-3; Jr 7:21-23; Os 2:11). Davi, semelhantemente, viu algo além de Moisés. Mesmo nos tempos das sombras, o patriarca já vislumbrava algo maior em relação a Deus. Ele se aproximava do Eterno, e com Ele se relacionava, não como quem se aproxima do monte Sinai. Numa ocasião em que deveria escolher um castigo, entre cair nas mãos de Deus ou das dos homens, preferiu o juízo de Deus, pois sabia que o Eterno é misericordioso, diferentemente dos homens (1Cr 21:13). Por isso também entrou no templo, na casa de Deus, e comeu os pães da proposição, e, ainda assim, ficou sem culpa (Mt 12:4-5): não sem culpa segundo a lei, cujo ministério era a condenação e a morte (2Co 3:7 e 9) mas segundo o Deus misericordioso, cujo nome é Jesus: Yahveh é a salvação. Em toda a sua vida, viveu como se conhecesse o Deus revelado no NT, conforme Paulo declarou: “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo; não imputando aos homens as suas transgressões, e nos confiou a palavra da RECONCILIAÇÃO” (2Co 5:18). E, pelo fato de Davi conhecer mais a graça de Deus, um pouco além do que seus contemporâneos, é que não lhe foi permitido edificar a casa de Deus. Ora, mas que raciocínio mais contraditório: Davi conhecia mais a Deus, e não lhe foi permitido edificar o templo?! Sim. Porque conhecendo a Deus como o Deus gracioso, NÃO COMO O DEUS IRADO DO SINAI, derramou ele muito sangue, em suas batalhas (travadas em nome de Deus!?). Por isso, Deus lhe disse: “A palavra do Senhor, porém, veio a mim, dizendo: Tu tens derramado muito sangue, e tens feito grandes guerras; não edificarás casa ao meu nome, porquanto muito sangue tens derramado na terra, PERANTE MIM” (1Cr 22:8). Como conciliar essa sentença de Deus contra Davi, à luz de tantas guerras presentes no AT?  Diante disso é preciso rever as batalhas sangrentas típicas dos tempos antigos, à luz da graça de Deus, NÃO COMPRENDIDA NO AT, porém manifestada no NT, na pessoa de Cristo Jesus.  
  1. Tendo em vista que as Escrituras passam pelo olhar interpretativo do homem, pois Deus não anula a consciência humana no seu tempo, deve-se concordar que há nela elementos antropológicos. Isso acontece mesmo no NT. Quando João, no Apocalipse, disse que haveria uma chuva de estrelas sobre a Terra (6:13), não se referia certamente a estrelas; mas esse era o conhecimento que ele tinha então, e, mesmo assim, Deus não o corrigiu, ensinando-lhe coisas que só viriam à tona, séculos depois. Um erro de natureza astronômica está cometido nas páginas do último livro da Bíblia. Mas isso não pode ser conferido a Deus, nem tampouco à inspiração das Escrituras. Os homens falam o que recebem de Deus, mas esse falar vem misturado com o seu conhecimento possível, e sua compreensão presente.
A cultura do povo hebreu, assim como a dos povos de seu tempo, admitia guerras, escravidão, torturas, em razão da consciência involuída dos homens de então. ELES não viam em tudo isso o mal que hoje, no século XXI, nós vemos. Mesmo no tempo do Cristo encarnado, ainda não havia os direitos humanos, a noção de indivíduo, a humanidade da mulher, dos escravos, dos estrangeiros; essas coisas são próprias dos tempos da Modernidade. Por isso, é dito que Cristo não foi conhecido pelos seus, uma vez que Jesus era uma figura estranha no Seu tempo. Mesmo no NT, há a presença da escravidão, a qual o apóstolo Paulo não ab-rogou, mas estabeleceu uma relação fraternal entre senhor e servo. Em tudo isso se vê, não a ratificação divina, nem tampouco a ordem de Deus para se praticar tais coisas. Vê-se, todavia, o Deus – ETERNO – que caminha com os homens, no tempo (não condescendendo com suas obras contrárias ao Seu caráter), mas que as admite, mediante a Sua VONTADE PERMISSIVA, por causa de Sua misericórdia, aguardando o tempo do seu crescimento. Esse crescimento não é de Deus, tampouco se refere à Sua revelação progressiva; mas é o crescimento dos homens, a qual Deus respeita, porque sabe que o homem é um ser psicossocial, que está em constante evolução. Em razão da limitada compreensão que os homens tinham de Deus, é que muitas coisas foram por eles conferidas ao Eterno. Suas vitórias nas batalhas sangrentas eram, PARA ELES, proezas de fé, pois eram lutadas em nome de Deus. E isso, somente NESSE SENTIDO, era recebido por Deus como demonstração de profunda confiança. O Deus infinito, que se faz finito na história do Seu povo, não lhes exigia nada além da fé. Suas lutas, guerreadas em nome do “Senhor dos exércitos”, foram grandes demonstrações de uma fé invencível no único Deus, criador de todas as coisas. Israel batalhava contra povos pagãos e falsos deuses, movido pela fé no Deus único, revelado a eles, na medida em que podiam compreender. Por essa razão, não titubeavam em conferir a vitória ao seu Deus, porque eram movidos por essa consciência. A força era o modo como tinham de demonstrar a superioridade do verdadeiro em detrimento aos falsos deuses. Por isso, uma grande galeria de heróis foi construída; não uma galeria de homens que derramaram sangue, mas uma galeria de HERÓIS DA FÉ (Hb 11). Quantas vitórias não se alcança nos dias de hoje, em nome de Deus, por meio da fé n’Ele, mas que estão marcadas por procedimentos que contrariam a vontade de Deus, revelada nas Escrituras do NT? Deus ratifica ou ordena tais procedimentos? Não, absolutamente. Porém, Deus ainda nos dias de hoje, não leva em consideração a ignorância de consciências não evoluídas. Em Sua longanimidade, Ele aguarda o crescimento, não abandona os Seus filhos, e os abençoa os que têm fé em Seu nome.
  1. Tudo isso, porém, não invalida os juízos de Deus. As Escrituras estão fartas de declarações, de que Deus há de julgar os homens. Os juízos de Deus, entretanto, ocorrem passivamente. O apóstolo Paulo, ao se referir a ira de Deus, que se revela do céu, afirma que “DEUS OS ENTREGOU”, numa clara afirmação de que, os homens sofrem o juízo divino, quando dele se afastam (Rm 1:18 e 24). De sorte que, a única maneira de se livrar do juízo é voltar-se a Deus, em plena reconciliação com Ele (Sl 2:12). E isso é dito em lúcida referência àqueles que romperam os laços e quebraram as algemas com Deus (Sl 2:1-3). Por isso, afirmou Paulo, em referência ao juízo passivo de Deus: “Não vos enganeis; Deus não se deixa escarnecer; pois TUDO O QUE O HOMEM SEMEAR, ISSO TAMBÉM CEIFARÁ” (Gl 6:7). Ou seja, o homem é quem planta, e ele é quem colhe o que plantou. Essa é a lei da semeadura, a qual Deus estabeleceu em toda a Sua criação.
Deus não pode matar, ainda que as Escrituras assim o digam, antropomorficamente. “Matar” ou “fazer perecer” não podem ser compreendidos em termos de uma ação ativa de Deus, de ferir e destruir a Sua criação. Deus não pode insurgir com violência, por mais justificada que seja, porque tal atitude é contrária ao Seu caráter de amor. Quando o Senhor Jesus proferiu o juízo contra Jerusalém, dizendo que a sua casa ficaria deserta, o fez em lágrimas, dizendo: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que a ti são enviados! Quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, mas VÓS NÃO QUISESTES” (Mt 23:37). Ora, vede. Era como se Jesus, vendo o juízo iminente, lamentasse o fato de os filhos de Israel sofrerem a consequência de seus próprios caminhos. O princípio de todo o juízo divino consiste na separação do homem de Deus. É a consequência inevitável da separação da Vida: “se comerdes do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, CERTAMENTE morrereis” (Gn 2:17). Não há nisso ameaça alguma; antes, há a declaração da fatalidade de se abandonar a fonte de toda bênção. Por isso está escrito: “Assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e, PELO PECADO ENTROU A MORTE, assim a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram” (Rm 5:12). A morte, consequência final e acabada do pecado, entrou no mundo pelo pecado: origem de todas as misérias humanas. Não é proveniente de Deus. Deste, só provém vida, como está escrito: “o salário do pecado é a morte, mas o DOM GRATUITO DE DEUS É A VIDA ETERNA” (Rm 6:23). O Eterno é comparado a um manancial de águas vivas, que os homens abandonaram (Jr 2:13). Não sem razão, tanto no AT como no NT, Deus está sempre a convidar os homens a voltarem-se para a vida, gratuitamente: “Ó vós, todos os que tende sede, vinde às águas, e os que não tendes dinheiro, vinde, comprai e comei; sim, vinde e comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite” (Is 55:1); O Espírito e a noiva dizem: Vem! Aquele que ouve diga: Vem! Aquele que tem sede venha, e beba de graça da água da vida” (Ap 22:17). Deus é vida em Si mesmo. Onde a vida toca, tudo vivifica. Não há como proceder morte da Vida. Pelo contrário, a cura do mundo dar-se-á quando o Rio de Águas Vivas inundar todos os recantos da criação. Por onde o Rio passar, toda morte se transformará em vida: “Então me disse: estas águas saem para a região oriental e, descendo pela Arabá, entrarão no Mar Morto, e ao entrarem nas águas salgadas, estas se tornarão saudáveis” (Ez 47:8). Esse entendimento é uma questão de conceito. Deus é luz, e n’Ele não há treva nenhuma; Deus é vida, e n’Ele não há morte alguma; Deus é amor, e n’Ele não há ódio, nem vingança, nem retaliação, nem ressentimento. “No amor não existe o medo; antes, o perfeito amor lança fora o medo. Ora, o medo produz tormento; logo, aquele que teme, não é aperfeiçoado no amor” (1Jo 4:18). Se não houver uma releitura das páginas do AT, como o fez Saulo, depois que encontrou a Cristo no caminho de Damasco, como conciliar o relato mosaico da queda do homem, com a releitura de Cristo, do mesmo fato? Refiro-me ao fato de Moisés ter dito que DEUS EXPULSOU O HOMEM DO JARDIM DO ÉDEN (Gn 3:23). Afinal, Deus expulsou mesmo o homem do jardim? Bem, segundo Cristo, foi o filho mais moço (referência aos gentios, e, portanto, a Adão), que saiu de casa, enquanto que o Pai, depois de amorosamente permitir, permaneceu de braços abertos, na porta de casa, aguardando o seu retorno (Lc 15:11-25). A reinterpretação é feita a partir da revelação de Deus, na face de Cristo (2Co 4:6). Todo o AT deve ser relido, tendo o Filho do amor do Pai como o princípio hermenêutico de interpretação. A reinterpretação não é, por assim dizer, uma anulação do que foi dito; mas a atualização da verdade, conforme a luz foi brilhando, e demonstrando a exatidão da natureza d’Aquele de quem que é amor: “Deus é amor” (1Jo 4:8). No amor de Cristo, Alexandre Rodrigues

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