O JUÍZO DE DEUS – DILÚVIO E SODOMA 2Pe 2

Caros irmãos, com respeito ao texto de 2Pe 2:4-6, apresento-lhes o que dele posso compreender à luz da revelação contida no todo das Escrituras. Fá-lo-ei apresentando ponto a ponto do meu pensamento, com o fim de que compreendam a exatidão do que proponho e se apercebam do caminho que me leva a tal ou qual conclusão.
  1. A despeito de qual seja a compreensão ou linha doutrinária adotada acerca de determinado assunto, sempre haverá textos que parecem contradizê-las nas Escrituras. A bíblia, por motivos alheios a mim, não apresenta verdades com a exatidão que desejamos, exceto em raríssimos casos. Temas como a trindade divina, a natureza eterna e ao mesmo tempo coexiste do Filho em relação ao Pai, reino milenar, segunda vinda de Cristo, dentre outros, sempre apresentarão textos que geram alguma dificuldade no encaixe das “peças”, de um lado e de outro. O esforço, portanto, de se obter o entendimento que se aproxime o máximo da verdade não pode ser ignorado.
Tenho para mim que a solução para tais entravamentos encontra-se em cinco princípios hermenêuticos essenciais, os quais, e somente por meio deles, pode-se obter a unidade das Escrituras. Se ignorados, estaremos fadados a uma “torre de babel”, e a divisão será um caminho sem volta, como temos visto acontecer no meio da cristandade. São eles, na seguinte ordem hierárquica:
  1. O caráter e a natureza do Pai, alvo de toda e qualquer revelação contida nas Escrituras. Afinal, o fim de toda a História divina com a sua criação ocorrerá quando todas as coisas estiverem subordinadas a Deus Pai, incluindo o próprio Filho, quanto à sua economia (1Co 15:28).
  1. A vida e o viver do Filho encarnado, assim como seus ensinamentos feitos diretamente aos seus apóstolos, contidos nos quatro evangelhos. A verdade clara das Escrituras é que NÃO SE PODE CONHECER O PAI, SENÃO NA FACE DO FILHO (2Co 4:6). Qualquer coisa que fuja à medida, à estatura, à profundidade, à largura do Filho de Deus manifestado, mesmo no NT (Atos, Epístolas e Apocalipse), deve ser lida e interpretada sob a luz de sua pessoa. É Nele que se tem a exatidão de quem é o verdadeiro Deus (Hb 1:3;1Jo 5:20). Não é sem razão, que o Cristo encarnado é o falar final e último de Deus aos homens (Hb 1:1).
  1. As Escrituras divinamente inspiradas, conforme se lê na versão corrigida, em 2Tm 3:16 e 17: “Toda Escritura divinamente inspirada é proveitosa para ensinar… para que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente instruído para toda boa obra”. Nisso descansa o coração de todo verdadeiro discípulo de Cristo, que procura, mediante a bíblia, conhecer a Deus em verdade.
  1. A criação de Deus. Embora pareça um retrocesso no eixo progressivo da revelação divina, há de se observar que a ordem aqui exposta se encontra invertida no eixo da História, começando do fim para o começo. Não se pode prescindir de todos os meios usados por Deus para se revelar aos homens, uma vez que a revelação é única e sempre a mesma, com a diferença de que ela se amplia – da menor para a maior –, porém, nunca subtrai. Na criação de Deus, pois, pode-se conhecer os atributos invisíveis de Deus, o seu eterno poder e a sua própria divindade (Rm 1:19-20). De modo que, por meio do Deus unigênito encarnado e da criação divina, podemos ter ideia do caráter e natureza de Deus Pai, uma vez que nesta se revela a própria divindade do Eterno.
  1. A consciência humana. Esta é uma “área” do espírito humano, dimensão divina no homem que o faz conhecer a natureza de Deus, mediante a qual pode o homem definir seus relacionamentos com os seus semelhantes (Rm 2:14-16). Ou seja, na medida em que a consciência humana evolui, o homem se melhora enquanto ser humano. De sorte que, todo aprimoramento da humanidade, no que diz respeito a valores como justiça, direito, fraternidade, generosidade, igualdade, respeito, são nuances da natureza e atributos divinos fluídos de seu espírito humano. E não somente isso, mas é fato incontestável de que deve o discípulo de Cristo ter, não somente coração puro e fé sem hipocrisia, como também é necessário que ele tenha CONSCIÊNCIA LIMPA (1Tm 1:5 e 19; 3:19). Essa é o aferidor subjetivo da fé individual de cada cristão. Por este motivo resisto pregar qualquer que seja a mensagem que fira a minha consciência.
É, pois, a partir desses paradigmas hermenêuticos que se deve interpretar as Escrituras, buscando sempre harmonizar seus ensinamentos gerais aos princípios específicos da revelação. Daí o esforço o qual mencionei no final do primeiro parágrafo deste tópico.
  1. As Escrituras declaram, alto e bom som, pelas vozes de Moisés, dos Profetas, de Cristo e dos apóstolos, que DEUS É JUSTIÇA. As mesmas vozes declaram expressamente que o Altíssimo é amor. Não se pode, pois, na busca do conhecimento de Deus, prescindir da justiça divina em nome do seu divino amor. Semelhantemente não se pode proclamar a justiça divina em detrimento de seu amor.  Deus é um todo indivisível. De sorte que não se pode subtrair de seu Ser nenhum de seus atributos, tampouco colocá-los em oposição. O Eterno é todo amor e todo justiça: Ele é um amor justo e uma justiça amorosa.
Para o homem, todavia, é-lhe impossível conciliar os atributos do amor e da justiça, pois lhes parecem antagônicos em razão dos sofismas de seu coração enganoso. Não seria este o motivo por que Deus nega ao homem o direito de julgar o seu próximo? (Mt 7:1). E por qual motivo Deus veta ao homem o direito à vingança? (Rm 12:19; Hb 10:30). Vejam como que o juízo e a vingança pertencem exclusivamente a Deus, pois este não os faria segundo o que os homens chamam juízo e vingança. Ora, como podemos imaginar um juízo e uma vingança em amor? E como podemos conceber o amor de Deus aplicando juízo e vingança? Porventura não nos parecem coisas contraditórias? Para o Deus justo e amoroso, todavia, isso se resolve facilmente, mediante o que podemos chamar de JUÍZO PASSIVO DE DEUS.  
  1. Uma vez que temos clareza que ao Deus amoroso pertencem o juízo e a vingança, cabe-nos agora colocar os atributos da justiça e do amor em diálogo, a fim de entendermos, não o quê – pois isso já sabemos –, mas o como essas coisas ocorrem. Para tanto, tomaremos alguns textos das Escrituras que, sem contradição, fazem o conúbio do que para nós parece dicotomizando.
  1. “Não vos enganeis: de Deus não se zomba; pois AQUILO QUE O HOMEM SEMEAR, ISSO TAMBÉM CEIFARÁ. Porque o que SEMEIA para a sua própria carne DA CARNE COLHERÁ CORRUPÇÃO; mas o que SEMEIA para o Espírito DO ESPÍRITO COLHERÁ VIDA ETERNA (Gl 6:7-8).
Vejam que o texto começa com certa dose de “ameaça”. Seria como que dissesse: “Cuidado com Deus! Deus não se deixa escarnecer!” Logo, entretanto, se esclarece algo que não raras vezes passa despercebido aos olhos desatento do leitor:  corrupção ou vida eterna são colheitas que o próprio homem semeia. Ora, se o homem semeia para a carne é justo que ele colha o fruto da carne, isto é, corrupção; se o homem semeia para o Espírito, é justo que ele colha o fruto do Espírito, a saber, vida eterna. Deus já deu ao homem tudo de que este precisa. Deu a sua Vida, a Luz, a Redenção, o Espírito do seu Filho, sua Palavra. Essas dádivas divinas são a sua graça dada ao homem, e o acolhimento delas são para o homem o recebimento de seu amor, que não lhe deixou sem escape. Quando, porém, o homem despreza sua graça e seu amor, este colhe o fruto semeado por suas próprias mãos. O Deus amoroso, por sua vez, vendo o homem desencaminhar-se, não retira dele a liberdade que lhe deu, privativamente, em relação à criação terrestre. Tendo o Onisciente Deus poder para impedir o sofrimento do homem, pois conhece o fim dos seus maus caminhos, não o faz, movido pela sua justiça. A justiça de Deus é para o seu amor o contrapeso, que o faz ver os seus filhos sofrerem a penalidade de seus próprios pecados. Olhando passivamente o fim que levaria os caminhos dos judeus, Jesus apenas chorou (Lc 19:41), dizendo: “Jerusalém, Jerusalém, QUE MATAS os profetas E APEDREJAS os que te foram enviados! Quantas vezes QUIS EU reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e VÓS NÃO O QUISESTES! EIS QUE A VOSSA CASA VOS FICARÁ DESERTA. Declaro-vos, pois, que, desde agora, já não me vereis, até que venhais a dizer: Bendito o que vem em nome do Senhor! (Mt 23:39). Ora, o que se vê nesse texto? Vê-se a atitude passiva de Cristo diante do iminente juízo; (por que ele não fez nada para mudar a situação, se ele tinha todo poder?); vê-se a imputação da responsabilidade dos judeus (justiça divina); vê-se a declaração de seu amor, manifestado pelo choro e pela metáfora da galinha e seus pintinhos; vê-se a sentença pronunciada contra Jerusalém (juízo), que recairia na forma de vingança por causa dos pecados de Israel, por terem matado os profetas, apedrejados os enviados e desprezado o Cristo de Deus. Naquele momento, o Amor chorou e a Justiça declarou a sentença. A isso chamamos “juízo passivo de Deus” sem prejuízo de seu amor. Em contrapartida, tendo em vista todos os meios usados por Deus para livrar o homem, a ponto de vir pessoalmente salvá-lo, dizemos que o amor divino é “amor em plena e constante atividade”, pois nunca encolhe suas mãos ao que lhe pede ajuda (Is 59:1) nem nega perdão aos que se achegam a ele arrependidos (Is 55:7).
  1. “A ira de Deus se revela do céu contra toda sorte de impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça… Por isso, Deus entregou tais homens à imundície, pelas concupiscências de SEU PRÓPRIO CORAÇAO…” (Rm 1:18 e 24).
Mais uma vez se vê nas Escrituras a ira de Deus, sua justiça, seu juízo passivo e seu amor. Tudo reunido e sem contradição. Nesse texto, fica-nos claro que a ira de Deus SE MANIFESTA, no momento presente, contra os homens perversos. O DEUS SANTO NÃO PODE TOLERAR O MAL. Entretanto, como ele manifesta a sua ira? Ou, de que natureza é a sua ira? Ora, vede. Não se vê aqui um Deus raivoso, implacável, senão o amoroso Deus que, não podendo suportar o mal, apenas ENTREGA tais homens a si mesmos, a fim de que colham os frutos da concupiscência de SEUS PRÓPRIOS CORAÇÕES. Isso, porém, não ocorre sem que antes o gracioso Deus lhes conceda a revelação da Verdade, ainda que rudimentar – porém suficiente para tornar-se conhecido. NÃO HÁ REVELAÇÃO DE DEUS DESPROVIDA DE GRAÇA SUFICIENTE. Os homens, todavia, TENDO CONHECIMENTO dos atributos invisíveis de Deus, de seu eterno poder e de sua própria divindade, NÃO LHE DERAM A GLÓRIA DEVIDA (Rm 1:19-21). Nesse caso, Deus não desceu do céu com espada e anjos para se vingar. Antes apenas os entregou à própria sorte. Eis o juízo passivo de Deus em plena manifestação e o seu eterno amor manifestado mediante a sua revelação e graça dadas ao homem.
  1. “Ou não tem o oleiro direito sobre a massa, para do mesmo barro fazer um vaso para honra e outro, para desonra? Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição, a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em vasos de misericórdia, que para glória preparou de antemão, os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios? Assim como também diz em Oséias: Chamarei povo meu ao que não era meu povo; e amada, à que não era amada; e no lugar em que se lhes disse: Vós não sois meu povo, ali mesmo serão chamados filhos do Deus vivo” (Rm 9:21-26).
Há neste texto duas coisas relativas ao amor de Deus e a sua justiça:
  1. O direito de Deus de escolher, unilateralmente, aqueles a quem ele amou eletivamente e predestiná-los para ser a noiva de seu Filho (Ef 1:4; Rm 8:30; 9:13). Estes são os “vasos de misericórdia, que para a glória preparou de antemão” (vs. 21 e 23). É importante notar que a palavra grega usada por Paulo para a expressão “preparou de antemão” é proetoimazw/proetoimazoe significa “preparar antes”.
  1. O direito de Deus de não escolher pessoas diversas, sem, entretanto, negar-lhes o direito à salvação (Rm 1:19-20; 2:14-16 Cf. Mt 25:31-40). É mister creditar ao bispo Josué e tornar conhecida a observação por ele feita acerca da palavra “preparados” para a perdição, no versículo 22. Paulo, com o fim de não causar confusão, usa palavra diferente para se referir aos não-eleitos, a saber, katartizw/katartizo, cujo significado é “fortalecer, aperfeiçoar, completar, tornar-se no que se deve ser”. Veja como a soberania trabalha conjuntamente o amor e a justiça. Deus não predestinou homens para a perdição; pelo contrário, movido pelo seu amor SUPORTOU COM MUITA LONGANIMIDADE os vasos (homens) que, em razão de seus próprios caminhos, encheriam a medida de suas iniquidades e colheriam o fruto de sua própria semeadura. Em outras palavras, sendo Deus onisciente, sabendo do destino dos homens perdidos, destino esse que seus próprios pés cavariam, ainda assim, aguardou com longanimidade que completassem a medida de seus pecados. Nisso, mais uma vez, se vê o juízo passivo de Deus e o seu amor eternamente em plena atividade. Deus não lhes negaria perdão e salvação, caso estes últimos lhe suplicassem, arrependidos, por clemência. Entretanto, por terem pecado contra o Espírito Santo… (este é outro tema).
  1. Chegamos a 2Pe 2:2-4. Esse texto, como os demais citados acima, parece dizer que Deus julgou e condenou ATIVAMENTE os anjos caídos, o mundo antediluviano e as cidades de Sodoma e Gomorra. Entretanto, quando se recorre ao seu contexto, uma vez que o objetivo imediato não é falar acerca destes, mas acerca dos falsos profetas que surgiriam nos últimos dias, logo nos deparamos com a seguinte sentença: “Assim como, no meio do povo, surgiram falsos profetas, assim também haverá entre vós falsos mestres, os quais introduzirão, dissimuladamente, heresias destruidoras, até ao ponto de renegarem o Soberano Senhor QUE OS RESGATOU, TRAZENDO SOBRE SI MESMOS repentina destruição” (v. 1). Ora, o juízo aqui descrito, o qual é exemplificado pelo juízo dos anjos, antediluvianos e sodomitas, é um juízo passivo, visto que, uma vez resgatados, semeiam sua própria condenação, pois semeiam para a carne, TRAZENDO ELES PRÓPRIOS SOBRE SI MESMOS a destruição.
O fato de o apóstolo usar expressões como “não os poupou”, “precipitou-os”, “os entregou”, “ordenou-as à ruína completa” não significa juízo ativo. — Ora, como não? Pergunta alguém. A resposta encontra-se no conceito de JUÍZO PASSIVO. Se Deus, podendo livrar alguém da condenação, ele não o faz, é porque ele quer, do contrário, o salvaria. Esse querer, entretanto, visto que a salvação foi estendida a todos os homens (Jo 3:16; Rm 11:32), refere-se à VONTADE PERMISSIVA DE DEUS, para o cumprimento de sua justiça. Caso contrário, se Deus interviesse em amor, em detrimento de sua justiça, nem o seu amor seria amor nem a sua justiça seria justiça. O querer permissivo de Deus, portanto, está para o seu juízo passivo. Essa verdade fundamenta-se na própria natureza do amor, discriminada em 1 Coríntios 13:4-8 e no próprio conceito de justiça. O verdadeiro amor não pode ferir senão em dano próprio. A justiça não pode ir contra si mesma, do contrário seria injustiça. Se Deus é amor (1Jo 4:8), como poderia ele insurgir contra os que o desprezam? E se Deus é justiça, como poderia ele deixar impune os que amam a injustiça?

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